reportagem Revista Crioulos
O Laço e a Alma do Rio Grande
Sou um laçador que pesquisa e escreve sobre Laço; logo, estou caracterizado como membro da comunidade produtora dessa manifestação cultural. Meu objetivo é mostrar a importância dessa manifestação perante a cultura gaúcha e brasileira.
Escrevi este artigo ao conhecer a declaração de Paixão Côrtes de que a estátua do laçador não é só uma imagem, é alma de um povo. O caso é que manifestações culturais que envolvem sentimento de identidade e de continuidade, como é o caso do Tiro de Laço, que está ligado a esse símbolo, podem ser reconhecidas oficialmente como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, algo que venho buscando.
A importância da Estátua do Laçador como símbolo não só de Porto Alegre, mas do Estado, como afirmou Paixão Côrtes em reportagem publicada na Zero Hora do dia 15 de janeiro, é evidente. Também é sensato dizer que ela é a face do Rio Grande do Sul e que representa a imagem que identifica este Estado.
É fácil sustentar as afirmações anteriores: basta ir ao aeroporto e à rodoviária para verificar a comercialização de objetos com a imagem do Laçador, que são levados como lembrança do Rio Grande do Sul por aqueles que passam por aqui. Se isso não convencer, torna-se suficiente assistir aos diversos telejornais que utilizam essa figura em seus cenários, como o Jornal do Almoço, além do fato de que há uma infinidade de estabelecimentos comerciais que levam o nome da estátua na Região Metropolitana.
Talvez o que confirme o entendimento apresentado, além dos argumentos acima, seja a localização da estátua, que está em frente ao aeroporto, local que pode ser considerado a porta do Estado.
Portanto, ao que se vê, a estátua está realmente ligada à identidade do Estado. Seja urbano ou seja rural, parece que o gaúcho tem como grande símbolo a estátua do laçador. Isso se comprova com o fato de o maior centro urbano do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ter uma face rural assumida pelos seus habitantes citadinos e urbanos. Cabe lembrar que o laçador foi escolhido como símbolo da capital por pessoas da cidade. Essa talvez seja a maior evidência de que essa estátua é a cara do Rio Grande, seja para quem é da cidade ou do campo.
A partir daqui, apresenta-se outra evidência ligada a essa estátua que é um referencial: trata-se da manutenção da prática do laço, do ato de laçar. Isso ocorre através do Tiro de Laço.
Importante relembrar que o laçador é aquele que laça, portanto, aquele que domina a técnica de laçar. Diante desse conceito, supõe-se que ele é um indivíduo rural, um tipo social do campo. No entanto, essa suposição não se confirma necessariamente assim, pois alguns laçadores realmente são campeiros, mas também há um grande número de laçadores praticantes do Tiro de Laço ou do laço esporte - recriações da técnica de laçar - que são da cidade. Em geral, a modalidade esportiva laço está em ascensão pelo aumento da adesão de cidadãos urbanos, gente que mora e trabalha na cidade, mas que se mantém ligada ao campo por conta dessa prática.
Laçar, independente de se tratar de lazer, é uma questão de alma, de sentimento, de natureza. É uma manifestação cultural promovida por gente da cidade e do campo que tem um caráter sentimental que os deixa convencidos de que são gaúchos e que o domínio da técnica os caracteriza como tal.
O evento social gerado a partir do laço pode ser considerado uma matriz da cultura gaúcha. O sujeito social produtor dessa matriz, o rio-grandense, incorporou à prática de laçar o modelo contemporâneo de trabalhar, de viver, de se divertir, algo que o caracteriza e o torna um ser único. O fato é que o laço é gerador de um ambiente cultural que vai além da realidade do campo, abrangendo todo o povo rio-grandense.
O gaúcho resgatou a prática do laço há pelo menos um século. O laço se apresenta como uma prática recriada pelo menos desde o início do século XX. Nesse período, ele começou a ser praticado como jogo, como esporte, ou seja, foi recriado fora do seu ambiente natural e passou a ter um aspecto lúdico. O motivo que o levou a ser promovido dessa forma foi a necessidade de firmar, além do campo, um tipo social que identifica o Rio Grande do Sul, o gaúcho.
Quem recriou o laço, João Cezimbra Jacques, precursor do tradicionalismo, lembrava, no início do século XX, que tal atividade se tratava de um exercício salutar e característico da nossa terra. Em resumo, era por isso que ele deveria ser mantido, relembrado. Então, desde essa época, ele passou a ser valorizado fora do seu ambiente natural, levando ao entendimento de que, a partir daí, começou a se configurar como manifestação cultural, como elemento reconhecido da cultura rio-grandense.
Depois da iniciativa de Jacques, o laço seguiu evoluindo. Cumprindo a sua função cultural, foi recriado por Alfredo José dos Santos, na década de 50, dando origem aos rodeios crioulos. Mais adiante, na década de 80, no Mato Grosso, houve uma nova recriação que resultou na modalidade esportiva laço comprido.
A manutenção da prática, viabilizada através das competições, torna o laço um elemento vivo da cultura gaúcha e brasileira. A técnica, atualmente, é reiterada através do tiro de laço, do esporte laço e do laço comprido. Essas diferentes nomenclaturas, resultado de recriações, mostram o quanto manifestação cultural laço é dinâmica, algo comum nas manifestações culturais vivas.
A função simbólica da estátua referida anteriormente, unida à prática do que está expresso no simbolismo, o laço, aponta para o aspecto imaterial.
O contexto apresentado, que envolve o elo do simbolismo com a prática, demonstra ser coerente a afirmação de Paixão Côrtes de que a estátua não é só uma imagem, é alma de um povo, ou seja, algo imaterial. Também mostra que o laço não é um mero esporte, mas sim, um desporto que é o meio de manter viva uma prática reconhecida e ligada à identidade do Rio Grande do Sul. É nesse ponto que a técnica de laçar afirma-se como patrimônio cultural imaterial.
O patrimônio cultural imaterial, segundo a UNESCO, é responsável por gerar um sentimento de identidade e de continuidade. Quanto à questão identitária, temos a estátua na condição de símbolo. Com relação à continuidade, ela se dá na forma da tradição Tiro de Laço. Logo, tudo que se viu até agora aponta para um bem cultural de natureza imaterial.
A partir da analogia que envolve a alma, feita por Paixão Côrtes, é possível observar que se trata, sim, de um sentimento de identidade, de continuidade e de imortalidade.
A técnica de laçar, basicamente por se tratar de um saber transmitido de forma oral que permaneceu através do tempo, resulta em uma tradição, o Tiro de Laço. Ele é o outro promotor da continuidade e viabiliza toda a dinâmica dessa manifestação cultural, proporcionando a reiteração da técnica.
Conforme a RESOLUÇÃO N° 1, DE 3 DE AGOSTO DE 2006, o INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN considera que, para os efeitos dessa Resolução, toma-se tradição no seu sentido etimológico de "dizer através do tempo", significando práticas produtivas, rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado.
Então, de acordo com essa Resolução, a técnica de laçar, em razão de permanecer através do tempo sendo reiterada através do tiro de laço, é uma tradição do povo gaúcho, condição necessária para ser patrimônio cultural imaterial.
Ao ser consultado sobre a possibilidade de reconhecer o Tiro de Laço como Patrimônio Cultural Imaterial, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual – IPHAE, reconhecendo a importância de dessa tradição, encaminhou a demanda ao IPHAN.
A visão exposta nessa manifestação, a qual apresenta evidências que levam ao entendimento de que se trata de um possível patrimônio cultural imaterial, resultou na solicitação do registro da técnica de laçar como bem cultural de natureza imaterial, com o nome de Tiro de Laço. Esse pedido deve-se principalmente ao fato de estarmos diante de uma questão identitária, reforçada a partir das recentes declarações de Paixão Côrtes, principalmente aquela na qual ele afirma que a estátua não é só uma imagem, é alma de um povo.
Existem vários Patrimônios Imateriais ainda não reconhecidos, mas poucos que representem questões identitárias de um estado, de um povo, como é o caso da técnica de laçar, expressa na estátua do laçador, que representa um vínculo do presente com o passado. Apesar de ainda ser utilizada nas fazendas, a técnica de laçar, como foi vista, é reiterada através do Tiro de Laço e do Esporte Laço, geradores de incessáveis eventos. Isso demonstra que se trata de uma manifestação cultural viva, legitimada pelo fato de acontecer, o que reforça o entendimento de que é um bem cultural de natureza imaterial que ainda precisa ser reconhecido como tal.
É importante reforçar que o que foi observado até aqui configura um processo cultural que deu origem a várias recriações. Devido a isso, no caso do Tiro de Laço, entende-se que cultura e esporte não são uma dicotomia. Sendo assim, é uma manifestação cultural em forma de esporte, que faz parte da cultura do rio-grandense.
O fato de se tratar de um esporte ligado à identidade do Estado, por conta do processo cultural que resultou nele, justifica o pedido da sua instituição como esporte símbolo do Rio Grande do Sul e como patrimônio cultural imaterial brasileiro.
Por fim, a condição simbólica da estátua do laçador e a prática do Tiro de Laço como meio de reiterar a Técnica de Laçar, que é responsável por promover uma tradição, resultam em um contexto que aponta para a manifestação cultural que mais se identifica com o Rio Grande do Sul, ou seja, representa a alma de um povo, como afirmou Paixão Côrtes.
Eduardo Fonseca Alves
Laçador e Pesquisador
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